11/04/2012 às 15:41
Uma decisão sobre aborto de anencéfalos ou o envio das religiões para o banco dos réus?
No post anterior, vocês viram que, conforme o previsto, Marco Aurélio Mello votou em favor do aborto de anencéfalos. A essência de seu argumento está exposta ali, no texto da VEJA Online. Antes que prossiga, uma observação se faz necessária. Gosto, no geral, dos votos do ministro Marco Aurélio — e, às vezes, discordo dele radicalmente, como aconteceu no caso da permanência, no Brasil, do terrorista Cesare Battisti. Não é que Mello tenha votado em favor dessa permanência. Entendeu que cabia a Lula, e só a ele, como presidente da República então, decidir. Eu me alinhei com aqueles que consideravam que não é assim. Discordar dele não quer dizer satanizá-lo — como tem virado hábito no país: há um esforço deliberado de certos grupos de pressão para esmagar a divergência. O curioso é que os “divergentes” quase sempre estão com a maioria da população. Isso significa que, cada vez mais, usa-se o território da lei para impor a vontade de uma minoria supostamente mais esclarecida. É evidente que maioria, por si, não é critério de verdade. Mas também não é sinônimo de mentira. Sigamos.
O que me incomoda do que leio — não assisti ao voto; depois vou ler o de cada ministro — sobre a exposição do ministro Marco Aurélio é uma certa tensão, quem sabe oposição, criada entre a dignidade humana e o que seria a perspectiva religiosa, para declarar, então, que, sendo leigo, o estado não tem de se ocupar dos óbices religiosos.
Há aí, parece-me, algumas confusões. Em primeiro lugar, a perspectiva religiosa não é, por si, contrária à dignidade humana coisa nenhuma. Para saber se é ou não, forçoso se faz analisar seu conteúdo. Em que, por exemplo, os fundamentos do cristianismo se oporiam a essa dignidade? Alguém conseguiria demonstrar algo a respeito? Duvido! O moderno humanismo tem seus pilares no cristianismo. Ignorá-lo é fazer má história; é produzir apenas ideologia sem fundamento. Sendo laico, de fato, o estado não é um procurador de religiões, mas também não deve ser seu algoz, como se tudo o que adviesse dessa experiência militasse contra valores universais. A defesa que o cristianismo faz da vida humana — sem restrições ou precondições — é ou não “universal”? Interessa ou não ao conjunto e a cada um dos homens? Na China moderna, os valores do cristianismo tornariam a vida mais arriscada ou mais segura?
Criou-se uma falsa questão quando o aborto é debatido — seja o de anencéfalos ou não. As religiões, invariavelmente, são mandadas para o banco dos réus, passam por um processo que eu chamaria de “ilegitimação civil”, como se professar uma crença fosse fruto de um exotismo qualquer, de um desvio, quem sabe de um subpensamento, de uma categoria inferior na ordem dos valores. O nome disso é preconceito.
No caso do aborto — de anencéfalos ou não —, os que, como eu, advogam contra a corrente majoritária (dos grupos de pressão, não necessariamente da população; desconheço pesquisa a respeito) não cuidam de determinar se a vida é divina ou não; se ela tem início na concepção ou não. Não estamos naquele terreno cinzento entre a ciência e a fé. Trata-se de saber se a sociedade deve, dado o consenso do momento, estabelecer que vida merece ser vivida e por quanto tempo.
Não posso assegurar que pensamento eu teria se fosse outro, é evidente. Assim, não vou aqui cair naquele truque vigarista de afirmar que “enquanto cidadão, penso tal coisa, mas enquanto cristão, penso…” Não! Sou um! Dados os fundamentos que entendo civilizados, que protegem a vida humana, repudio que seja o estado a determinar que vida deva ser vivida. Acho que isso é um retrocesso das conquistas do humanismo.
Assim, meu caro ministro Marco Aurélio, isso que o senhor poderia chamar “perspectiva religiosa” coincide, segundo o meu entendimento e o de milhões de pessoas, com a perspectiva laica. Essa contradição entre uma coisa é outra, seja ou não esta a intenção do meritíssimo (e eu acredito que não seja, deixo claro), corresponde a uma tentativa de alijar a experiência religiosa da vida das sociedades.
Quando isso acontecer, boa parte do que se entende por humanismo vai para o lixo. Arremato lembrando que, com efeito, guerras religiosas já fizeram muitas vítimas, como lembram constantemente alguns militantes ateus meio furibundos. Mas ninguém matou tanto quanto os estados oficialmente ateus. Se não é lícito, e não é, atribuir os milhões de mortos do comunismo, por exemplo, ao ateísmo em si, não foi a fé, também em si, que fez as vítimas dos conflitos religiosos. Mas aqui já derivo um pouco. Retomo o ponto. Precisamos decidir se, a cada questão que debatermos relativa à moral, à ética e aos costumes, será preciso, antes, exorcizar a religião para, então, tomar uma decisão que estaria pautada pela pureza.
Esse, pra mim, é o mundo do obscurantismo da razão.
Por Reinaldo Azevedo
Tags: aborto, STF
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