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terça-feira, 10 de maio de 2011

Uma lei que pegou demais



A Lei nº 11.343, sobre o tráfico de drogas, foi criada em 2006 com uma inovação: reconhecia a figura do usuário e dava a ele tratamento diferente do recebido pelo traficante. A legislação foi comemorada como um avanço. Esperava-se que, com o novo texto, usuários deixassem de ser mandados para as prisões, onde se misturavam aos verdadeiros bandidos. Cinco anos depois, constata-se que o maior reflexo da lei é o aumento da população carcerária. Um estudo feito por Pedro Abramovay, professor de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV), e Carolina Haber, professora de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostrou que, de 2007 a 2010, o número de presos por tráfico aumentou 62% – de 65.494 pessoas para 106.491. Em três anos, o tráfico de entorpecentes ultrapassou o crime de roubo qualificado como tipo penal mais comum nas prisões.

Alguém poderia dizer que mais traficantes presos significa menos drogas nas ruas. Não foi o que ocorreu. “Não se tem indício de que o consumo esteja caindo, que o tráfico esteja diminuindo ou que a polícia esteja funcionando melhor”, diz Abramovay, que até janeiro era o secretário nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), ligado ao governo federal, e foi afastado depois de defender publicamente o fim da prisão para pequenos traficantes.
O estudo revela que a maior parte dos presos são usuários ou pequenos traficantes que fazem o transporte da droga e, uma vez presos, são rapidamente substituídos por outros. Um estudo de 2009 da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade de Brasília (UnB) traçou o perfil de quem é preso acusado por tráfico de drogas nas duas cidades: na maioria são pessoas sem antecedentes criminais, que não portavam armas, estavam sozinhas e com pouca quantidade de droga. “São meros intermediários, e não os comandantes do crime organizado”, diz o juiz Walter Nunes, membro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “Quando focamos a atuação nos usuários e pequenos traficantes, não estamos combatendo com eficácia esse tipo de crime.”

A lei brasileira reconhece que existe diferença entre usuários e traficantes de drogas, mas não dá critérios objetivos para diferenciá-los. Diz que o policial deve se ater “à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Torna-se uma questão de interpretação do policial, que pode ou não ser confirmada posteriormente pelo juiz do caso. “A falta de regras claras estimula a corrupção do policial”, diz Salo de Carvalho, professor de ciências penais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).


Numa noite de fevereiro de 2010, Flávio (nome fictício) estava parado no balcão do bar de uma casa noturna de São Paulo quando foi abordado por policiais. Em seus bolsos foram encontrados quatro papelotes de cocaína (cerca de 3 gramas da droga) e R$ 150. A quantidade de dinheiro, a droga pronta para a venda e o local propício a essa atividade levaram os policiais à conclusão de que Flávio era um traficante. Universitário de 23 anos, estagiário de uma multinacional e sem antecedentes criminais, ele não passava de um usuário. Em vez de receber tratamento para o vício, foi mandado para a prisão, onde passou quatro meses e só foi solto porque sua família tinha condições para contratar um advogado que provasse que Flávio nunca vendera drogas. “É um caso recorrente causado pela falta de critérios para fazer a distinção”, diz Augusto Arruda Botelho, advogado de Flávio, que diz já ter defendido um homem de 30 anos que passou 40 dias preso ao ser flagrado com 10 gramas de maconha e 3 gramas de haxixe.

Situação pior vive quem é pobre. “O principal critério para alguém ser condenado é a situação econômica do réu”, afirma o defensor público Bruno Shimizu. Ele diz que o primeiro filtro – a abordagem policial – depende dos estereótipos sociais. “Pobre é desfavorecido. É tratado com preconceito pelos policiais e tem menos condições de contar com um bom advogado.

Países europeus estabelecem critérios objetivos para diferenciar usuário e traficante. Cabe ao policial aplicar a lei, e não interpretá-la. Na Holanda, quem tem até 5 gramas de maconha é considerado usuário e terá encaminhamento na esfera médica, não criminal. Em alguns Estados da Alemanha, o limite é 30 gramas de maconha, 5 gramas de cocaína e 2 gramas de heroína. Portugal estabelece limites maiores, por considerar que o usuário pode ter consigo drogas para consumir em dez dias. A Espanha criou uma tabela com quantidades que determinam se alguém é usuário, pequeno, médio ou grande traficante. “Nossa lei precisa de critérios mais rígidos”, diz o advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira.

No Senado, tramita um projeto de lei que prevê detenção, de seis meses a um ano, do usuário de drogas. Também abre a possibilidade para o juiz substituir a pena por tratamento especializado, que deixaria de ser voluntário. O senador Demóstenes Torres (DEM), autor da ideia, afirma: “O projeto é uma resposta à fracassada despenalização do uso de entorpecentes. Familiares, educadores e o Poder Judiciário ficam de mãos atadas para internar o usuário. O projeto repara esse equívoco”. A ideia esbarra na falta de infraestrutura do Sistema Público de Saúde (SUS) em oferecer tratamento gratuito. Sem essa possibilidade, o usuário corre o risco de ter de cumprir a pena.

A hipótese de manter encarceradas pessoas que não são criminosas contrasta com a superlotação no sistema prisional brasileiro. Em dezembro do ano passado, o número de presos era 66% maior que a quantidade de vagas. Segundo uma estimativa do Ministério da Justiça, cada preso custa, por mês, R$ 1.800 no sistema carcerário estadual e R$ 3.312 no sistema federal. “Também há o risco de que, quando um pequeno criminoso é solto, sai com conhecimento do crime muito superior ao que tinha – se é que tinha algum”, diz Mariz de Oliveira. Além de ineficiente, não é bom negócio manter consumidores de drogas na cadeia.

FONTE: REVISTA ÉPOCA

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